Feira de Santana, 08 de março de 2019.
CARTA ABERTA A EXCELENTÍSSIMA MINISTRA DA
MULHER, FAMÍLIA E DIREITOS HUMANOS, SENHORA DAMARES ALVES.
Em primeiro lugar quero parabenizá-la pelo cargo
que, ora, Vossa Excelência ocupa.
Sei das
inúmeras tarefas de V. Excelência, mas permita-me dirigir-lhe esta carta
aberta,
como uma
contribuição ao diálogo saudável e republicano. Reconheço que num Brasil
de altíssimas
taxas de feminicídio, de intolerância e violência contra os direitos básicos
das minorias,
os desafios de seu Ministério são imensos.
Meu nome é Elizete da Silva, nascida no Recôncavo da Bahia, criada na Escola
Bíblica
Dominical de
uma Igreja Batista, na qual meu pai era diácono, onde recebi as primeiras
e
inesquecíveis lições sobre ética, solidariedade cristã e que o Reino de Deus é
Justiça e Paz. Há quatro décadas sou professora de História na Universidade
Estadual de Feira de Santana, estudiosa do campo religioso brasileiro e
educadora preocupada com a
juventude
brasileira e o seu futuro.
Como o Brasil é uma república laica, todas as manifestações religiosas devem
ser
respeitadas,
inclusive o direito da Senhora Ministra ser “terrivelmente cristã,” contudo, convém
destacar que o Brasil não é uma sociedade cristã, o campo religioso brasileiro
é plural, o qual abriga cristãos de várias denominações, espíritas, religiões
de matrizes africanas, islâmicos, judeus, budistas e ateus, que merecem ser
respeitados nas suas crenças ou descrenças, como um direito constitucional e
garantido pela Declaração dos Direitos Humanos. Penso que a Pastora Damares não
deve confundir-se com a Ministra Damares. A Ministra de Estado não deve fazer
proselitismo, como uma pregadora. Caso contrário estará regredindo ao estatuto
colonial, quando vigia o Padroado Régio da Igreja Católica, só que agora um
Padroado Evangélico.
Os evangélicos, como os católicos sempre fizeram catequese aos indígenas, como
pastora, a
Senhora Ministra dedicou-se a uma ONG, que evangelizava indígenas.
Convém
esclarecer que no processo de evangelização não está incluído o sequestro de
crianças ou o
desenraizamento dos inocentes de seus lares. Se alguns missionários
praticaram
tais atos devem ser condenados, conforme a legislação vigente no País. A
adoção de uma
menina indígena é uma atitude pessoal da Pastora Damares, mas convém explicar,
em bom português, os trâmites que foram seguidos evitando equívocos perniciosos
à sua imagem e a dos evangélicos em geral.
A presença das mulheres em funções públicas é algo novo na História mundial e
do
Brasil,
resultante da luta histórica de centenas de mulheres que ousaram questionar as
relações androcêntricas, que colocavam os homens em superioridade. As sufragistas e
as feministas
do século XIX foram as primeiras no mundo contemporâneo a
questionarem
a primazia masculina. Excelência, as mulheres evangélicas ou
protestantes
foram parceiras fieis a encetarem essa batalha por direitos iguais e
escreveram
uma Bíblia da Mulher, lideradas por Elizabeth Stanton, para desmistificar a
submissão
imposta nas Igrejas Protestantes pelos pastores. Não confundir com as
Bíblias de
capa rosa, que são vendidas no mercado, atualmente. A Bispa Anglicana Dr.
Bianca Daeb`s
Almeida está organizando uma tradução em português, que virá a lume
brevemente. A
leitura deste livro trará benefícios no exercício ministerial e pastorado.
Hoje, a Senhora Ministra está usufruindo da luta dessas pioneiras sufragistas,
da
abolicionista
Isabel Beaumfoert, ou Sojurner Truth, uma mulher negra evangélica, de
origem
Quaquer (protestantes dissidentes antiescravistas), que ficou célebre pelo seu
contundente
discurso E eu também não sou mulher? pronunciado na Convenção das
Mulheres pelo
Sufrágio nos Estados Unidos em 1867. Na atualidade, esta luta continua
com muitas
mulheres, que merecem respeito, não são feias, são lindas, poderosas e
necessárias
como vigilantes dos Direitos Humanos, são advogadas, professoras, donas
de casa,
trabalhadoras em geral, artistas defendendo seus direitos como seres humanos, plenas
de dignidade e inteligência, tal qual os seres humanos do sexo masculino.
Fiquei estarrecida com o pronunciamento no Dia Internacional da Mulher da
Senhora
Ministra:
afirmar que a luta das mulheres por igualdade de direitos estimula o
feminicidio é
o mesmo que dizer que as vítimas são as culpadas pela violência, que as
abusadas
sexualmente provocam os seus agressores. Uma verdadeira inversão de
valores, em
que o legítimo e o justo são equivocadamente confundidos com o erro e a
perversão.
“Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça”.
(JOÃO 7:24, BÍBLIA).
Ministra, por favor, o treinamento de cabelereiro e manicures
para observar
se as mulheres estão sendo espancadas é perfumaria, parece um deboche diante da
gravidade da situação, que demanda do seu Ministério POLITICAS
PÚBLICAS
EFICAZES e preventivas para livrar meninas e mulheres do machismo criminoso.
No texto bíblico está escrito que Deus criou o homem e a mulher a sua imagem,
(Gênesis 1:27,
Bíblia) portanto sem qualquer laivo de inferioridade. Esta atitude
machista foi
desenvolvida no mundo judaico- cristão, como um equívoco que a queda e o pecado
entraram no mundo por causa de Eva e recai sobre ela e nós todas as culpas pela
loucura do mundo. Senhora Ministra, Eva, a Mãe de todos os viventes, comeu o
fruto do conhecimento do bem e do mal, sem ela não teríamos cultura,
conhecimento, seriamos bonequinhas, todas elas brancas, a passear no Jardim do
Éden.
Durante a Idade Média, as mulheres ficaram segregadas. Com a Reforma
Protestante
(1517) e o
resgate da doutrina do sacerdócio universal dos cristãos, as mulheres
passaram a
outro patamar, diante de Deus estão em pé de igualdade com os homens. E desde o
século XVI mulheres estão reivindicando o pastorado, que a Senhora Ministra também
exerce numa igreja evangélica e foi resultado da militância de muitas mulheres que
nos antecederam. A História está plena de exemplos de mulheres que lideraram movimentos
coletivos em defesa da dignidade e da liberdade da humanidade e o fizeram a
partir de suas comunidades religiosas.
Senhora
Ministra, as mulheres não devem apenas administrar a cozinha de suas casas ou ficar
no cotidiano doméstico. Devemos educar as nossas meninas para serem estudiosas e
profissionais competentes com atuação no mercado, tal qual os meninos. A
metáfora da cor de roupa, rosa ou azul, que devemos usar em meninos e meninas
proferida pela V. Excelência, em profunda êxtase, nos meios televisivos não
transforma uma criança, ou melhor, um ser humano, em bom cidadão: meninos e
meninas precisam de uma educação sólida, na qual a ética, a solidariedade e o
respeito às diferenças sejam valores inquestionáveis: “Ensina a criança o
caminho em que deve andar e até quando envelhecer não se desviará dele”
(PROVÉRBIOS. 22:6, BÍBLIA).
Nossas crianças e a juventude precisam de boas escolas públicas, de tempo
integral,
com
professores capacitados e bem remunerados, o lar não é o lugar adequado para a
formação
escolar. No Brasil Imperial, a aristocracia pagava os preceptores para educar
seus filhos.
Que camadas sociais poderão arcar com tais despesas atualmente? Com esta proposta
as camadas populares, nas quais pai e mãe precisam trabalhar que tempo terão para
escolarizar os seus filhos? Pais muitas vezes analfabetos e sem escolarização
terão condições de bancar a educação escolar feita por eles mesmos e privada?
Conforme o IBGE, 50 milhões de brasileiros vive na linha da pobreza, isto
significa que se tal proposta vingar, certamente, pais trabalhadores, pobres e
geralmente afrodescendentes não terão o direito à educação de seus filhos.
A escola democrática para todos como entendemos hoje, para meninos e meninas de
todas as
idades e camadas sociais, Senhora Ministra, é parte do ideário protestante
desde o século XVII. Como pedagoga, V. Excelência deve saber que o primeiro
livro de
didática, A
Didática Magna foi escrito pelo pastor e educador Amós Comenius, um
Irmão
Morávio, nascido em 1592. No Brasil e em vários países os evangélicos sempre
construíram
escolas ao lado dos templos e colégios de grande porte, que se tornaram
referência
pelo ensino de qualidade.
A homeschooling é um mau exemplo da sociedade estadunidense: no inicio do
século
XX pais
evangélicos fundamentalistas resolveram escolarizar suas crianças para evitar
as ideias
cientificas, que discordavam da leitura criacionista da Bíblia. Senhora
Ministra, a
fé cega não faz parte da tradição evangélica, Paulo fala no culto racional,
que era
necessário sabermos as razões da nossa fé (ROMANOS 12: 1, BÍBLIA). Não
tenha medo da
escola, tema a falta da escola neste Brasil com índices de analfabetismo tão
altos! O que precisa ser feito é incentivar as famílias a levarem seus filhos à
Escola. Um bom exemplo é a Holanda: crianças e jovens estudantes faltosos, sem
justificativa, os pais pagam multa pelas ausências de seus filhos.
A escolarização doméstica não resolveu os problemas da sociedade estadunidense,
que continua desigual, racista e violenta. Nos Estados Unidos, há mais de 2
milhões de
crianças em
idade escolar fora da escola, “um dos principais motivos para a prática
do homeschooling
é religioso”. São as minorias religiosas e étnicas que, de acordo com
os estudos
sobre o assunto, adere a essa nova modalidade de educação, conforme artigo da
pesquisadora Carlota Boto (2018) da Universidade de São Paulo.
E por falar em ideias científicas que questionam crenças arraigadas, Senhora
Ministra,
o livre exame
da Bíblia e o principio da liberdade intrínseco ao protestantismo
proporcionou
o desenvolvimento da ciência moderna. A oposição entre Ciência e Fé é
algo
descabido no mundo de hoje. Renomados cientistas, pensadores ou filósofos
católicos e
evangélicos não renegaram sua fé em virtude do estudo dos átomos, por
exemplo, ou
outra descoberta cientifica. Os evangélicos não falharam diante da ciência, pelo
contrário, os princípios evangélicos favoreceram o espírito investigativo.
Eis o testemunho eloquente de como a fé e a ciência não são excludentes: a
Professora
baiana
Archiminia Barreto, era uma mulher negra, membro da Primeira Igreja Batista
do Brasil, em
1910, quando da passagem do Cometa Halley no Brasil, não se juntou aos
fanáticos
alarmados, que pensavam que já era o fim do mundo. Ao contrário, a mestra
batista
escreveu um substancioso artigo no Jornal Batista analisando o Cometa como
um fenômeno
da natureza e que não trazia quaisquer sinais do apocalipse ou de
maldição
diabólica (SILVA,2017). Passado mais de um século, a atitude da professora e
articulista
batista pode trazer lições para a vossa atuação ministerial.
“Prudentes como as pombas e perspicazes como as serpentes” (MATEUS 10:16,
BÍBLIA), um
conselho bíblico que faria bem ao desempenho ministerial. Jamais uma
ministra de
estado, que tem a função e o desafio de atuar em politicas para a família,
mulher e
Direitos Humanos deveria aconselhar aos pais das meninas a fugirem do País.
Senhora
Ministra, as famílias e as meninas precisam de educação sexual para não se
tornarem
vítimas de delinquentes, ou da falsa propaganda da sociedade de consumo, que as
transforma em objeto sexual. Educação sexual ministrada por professores
competentes e
famílias bem informadas, com certeza evitará a gravidez indesejada, a
epidemia de
mães adolescentes e crianças abandonadas, e, sobretudo, os índices
elevados de
feminicídio que grassam no Brasil. A saída pelo aeroporto é para covardes,
sem nenhum
sentimento de responsabilidade pelo Brasil.
Não esqueça, nunca, Senhora Ministra, a fala de um cristão “deve ser sim, sim,
não, não e o que passar disso é obra satânica” (MATEUS, 5.37 BÍBLIA) eu e
centenas de
professores
ficamos indignados com as mentiras do Kit Gay, atribuído a Pastora
Damares e
desmentido nas redes de Televisão. O governo da Senhora Ministra foi eleito com
base em mentiras, mas se recuse a ser a portadora das inverdades, não cumpra o
papel de boba
da corte, que fala o que vem na cabeça e diverte as redes sociais e a
imprensa
ligeira. Assuma a dignidade do cargo com propostas consequentes, que
realmente
contribuam para a melhoria da educação e das relações sociais no País.
Mantenha uma
equipe de bons assessores, que conheçam a realidade brasileira, para
além das
noticias do WhatsApp ou do grupinho pessoal ou partidário de seguidores.
Para evitar desgastes políticos na imagem do Brasil, não fale nada que não
possa provar: aquela fala ou sermão que pronunciou antes de ser ministra, que
os pais holandeses masturbam suas crianças pegou muito mal. A imprensa
holandesa reagiu. O Telegraaf, publicou o texto "Ministra Damares conta
fábulas sexuais sobre a Holanda". Nos últimos quatro anos, tenho visitado
a Holanda como pesquisadora, frequentei famílias, universidades e jamais
presenciei algo parecido, muito menos o sexo livre no trem. Ao contrário,
convivi com um povo disciplinado, respeitador e trabalhador, que cultiva jardins
e mantém uma pontualidade calvinista nos serviços públicos.
Quanto aos traumas de infância, que V. Excelência carrega é de bom alvitre
buscar
ajuda
profissional para se libertar da dor e da angústia, impostas por falsos
pastores, “
lobos
vestidos em pele de cordeiro”, os quais merecem ser punidos pelos delitos
cometidos
contra uma criança. Não se deixe vitimizar, lute como uma mulher, não faça
da sua dor
motivo de escárnio público. As virtuosas e sábias mulheres da Bíblia podem
ser exemplos
para V. Excelência: destaco a guerreira juíza Débora no Velho Testamento e a
vigilante Maria a irmã de Lázaro, no Novo Testamento, que escolheu a melhor
parte. A Bíblia é um livro de sabedoria e pode ser lido com outro olhar, além
do dogmatismo.
Esclareço que não votei no atual Presidente da República, por discordar de suas
propostas.
Desde a campanha eleitoral, indignou-me a peça que mostrava dedos em
ristes como
armas, repetido por milhões de brasileiros, jovens e crianças como a
ensinar-lhes
que a violência está autorizada, num gesto tão simples... e o que me veio à mente
foi a “Banalidade do Mal”, (ARENDT, 1999), a violência fascistoide ocorrida no
século
passado na Europa. A sociedade brasileira não precisa de mais armas letais, nós
precisamos,
sim é de educação de qualidade, de justiça e inclusão social dos brasileiros
historicamente
excluídos, inclusive do direito básico de ter uma família.
Quero
participar do debate. Não me furtarei de cumprir minha tarefa como cidadã e
professora
comprometida com uma agenda democrática para resolver os graves
problemas
sociais do Brasil.
Com os
melhores votos de profícuo trabalho a frente do Ministério
Professora Doutora Elizete
da Silva